Em meio a todo o barulho causado pelas críticas à educação púplica no Brasil e o consequente sucateamento de suas escolas, quase ninguém se atentou ao fato de que o povo brasileiro "deseducado", "ignorante" e "malandro", sem nunca ter sido consultado sobre o que pensava sobre a crise da indústria fonográfica ou a questão dos direitos autorais diante das novas tecnologias, não se fez de rogado, fez um admirável uso dessas mesmas tecnologias e mesmo sem saber o que estava fazendo - e talvez, graças a isso - implodiu a Escola de Frankfurt e toda a ideologia que ela exportou para a teoria da comunicação do século XX.
Não. Você não precisa ser formado em comunicação pela USP para seguir lendo esse post. A maioria das teorias, se despidas de sua linguagem empolada, podem ser facilmente explicadas em meia dúzia de linhas. E é isso que este Cabaré vai fazer.
A Escola de Frankfurt era basicamente um grupo de pensadores alemães que viviam nesta cidade e que não viam com bons olhos as novas mídias que emergiam na época - o rádio, a televisão e principalmente as reproduções em disco. Segundo eles, a reprodução em escala industrial das obras de arte destruiria a aura mágica do "original" e do "único" e, num último grau, mataria a diversidade e acabaria por criar uma cultura global homogênia e facilmente controlável pelas forças opressoras das classes dominantes.
Era a emergente Cultura de Massas, baseada no que se chamava de Broadcasting, onde poucos veículos emissores difundiriam a informação que seria consumida por uma ampla massa de receptadores passivos.
Papo de comunista mal amado, eis a verdade. O triste é que esse pensamento contaminou o meio intelectual por mais de meio século - e ainda continua contaminando! - apesar dos surtos de pós-modernismo dos anos 60. Aliás, pós-modernismo é um termo que até hoje ninguém soube explicar satisfatoriamente. Talvez a melhor explicação seja: a tentativa de sintetizar uma cultura que por sua própria natrureza, não pode ser sintetizada. Ou seja, uma desonesta manobra por parte de filósofos e pensadoreas para manterem seus empregos.
Por sorte, nosso populacho, livre de patrulhamentos ideológicos e culturais - posto que o que ele produz não é considerado cultura - conseguiu subverter o termo Cultura de Massas. Tudo porque ele soube, mais do que qualquer outro povo de qualquer outro país do mundo, fazer bom uso das novas mídias digitais.
Enquanto as classes dominantes ficaram enxugando gelo e chorando as pitangas diante da impossibilidade de se criar um mercado viável para a música diante da queda do controle sobre os direitos autorais, o povo não sabia dessa impossibilidade e por isso, conseguiu criar seu mercado.
O inicio da revolução proletária se deu nos camelódromos, no começo dos anos 90. Era a época das fitas cassete, mas somente os durangos consumiam aquelas infames fitinhas, pois a qualidade do som não chegava aos pés dos originais. Com o advento dos CDs o cenário começou a mudar, já não eram só os durangos que frequentavam os camelódromos, mas também os primeiros consumidores pragmáticos que levavam em conta a relação custo/benefício na hora de comprar discos.
Não se sabe se o mercado por si só teria dado conta do recado, o que se sabe é que duas mentes visionárias foram fundamentais para que a revolução tomasse o rumo que tomou - Chimbinha da banda Calypso e Antonio Isaias, empresário dos Aviões do Forró.
Chimbinha não tinha empresário nem gravadora, mas tinha a cara e a coragem. A cara para dar aos tapas batendo de porta em porta das rádios para implorar que tocassem suas músicas e a coragem para reinvestir tudo o que ganhava, em CDs do disco de estréia da sua banda que eram vendidos a preços praticamente de custo para os logistas das cidades em que se apresentava. Foi o primeiro a fazer uso inteligente do barateamento das gravações. Depois de dois anos praticamente passando fome em cidades nem sempre maravilhosas, a estratégia deu certo e hoje ele tem mansão em Alphaville e jatinho particular. Além de fazer de sua banda um paradigma de ruptura dentro da musica brasileira, mas isso já é outra história.
Antonio Isaias foi mais radical. E mais esperto. Ao invés de vender seus discos a preços de custo e esperar pela sorte de alguém comprar em uma loja, resolveu dar os discos de graça para quem fosse aos shows dos Aviões. Eram os Promocionais Invendáveis. A vitória do ovo de um colombo histórico diante do ovo dourado de uma galinha folclórica. E a esperteza residia no fato de que, uma vez que os CDs não eram comercializados, estavam livres para gravar qualquer música, sem o empecilho de ter que pagar direitos autorais. Em menos de dois anos os Aviões passaram a ser a maior banda de forró do mundo e a empresa de Isaias, a mais poderosa do mercado. E a mais polêmica e criticada, mas isso também já é outra história.
Paralelamente a estas empreitadas invodoras, popularizava-se no Brasil a banda larga e as redes sociais, que o povo recebeu entusiasticamente, principalmente o Orkut e o MSN. Popularizaram-se os downloads. Os camelôs logo se reiventaram e passaram a trabalhar mais em cima dos DVDs, o que ajudou ainda mais na divulgação dos artistas, pois junto ao som foi adionada a imagem, para beneficio de todo mundo. Nunca tinha se consumido tanta música nesse país.
As classes dominantes continuavam enxugando gelo e a música "séria e de qualidade" produzida e consumida por essas classes permanecia numa espécie de stand by, no aguardo da resolução dos problemas de direitos autorais. O povo, ignorando esses problemas e diante de uma enorme oferta, acabou por obrigar a demanda a se qualificar, ou seja, os artistas se viram forçados a se diferenciarem da grande concorrência, fazendo de nossa música popular a torna-se a mais rica e diversificada do planeta.
O paradigma da Cultura de Massas, aquele onde poucos veículos emitiam uma informação que seria consumida por uma população passiva estava mudando. A informação passou a ser distribuída em rede. O termo hit passou a dar lugar ao viral. Era o começo do fim do Broadcasting.
Só que outra bronca dos malas de Frankfurt continuava de pé: a reprodutibilidade técnica e o fim da aura mágica" do "único" e "original". E não é que o povo brasileiro, com seu famoso jeitinho, conseguiu dar cabo disso?
A coisa toda começou lá no Ceará, no mesmo começo dos anos 90 em que as fitas cassete começaram a proliferar. Foi um cara chamado Chiquinho, da Discofran de Viçosa no Ceará, que começou a gravar os shows a partir da mesa de som onde trabalhava nos eventos. A principio era para ele mesmo escutar em casa e no carro, mas com o tempo, mais pessoas passaram a se interessar pelas gravações e ele passou a vender as fitas - inclusive alguns shows ele lençava em vinil! Inaugurou-se um mercado que foi crescendo aos poucos.
Na verdade era uma bomba relógio esperando o estopim digital para explodir.E a explosão aconteceu.
Foi tudo tão rápido e tão recente que talvez esse seja um dos primeiros artigos da imprensa a abordarem o tema. É dificil rastrear quem foram os pioneiros, isso demandaria uma pesquisa longa que estrapola os limites deste post, mas a coisa começou lá pela metade dos anos 00, quando as máquinas de múltiplos gravadores dos pirateiros passaram a serem usadas para reproduzir em CD as gravações dos shows assim que eles ocorriam. Esses discos eram disponibilizados para venda na saída, como souvenir.
Uma idéia genial, afinal de contas, quem não gosta de escutar no conforto de seu lar aquele show bacana que tanto o divertiu ou emocionou? Surgiam assim os chamados Fulanos CDs, gravadores que passaram a ser tratados como estrelas, disputando entre si quem tinha a fama de melhor qualidade na gravação. China CDs, Gustavo CDs, Clebemilton CDs, surgiram centenas deles. Daí para as gravações cairem nas redes sociais foi um pulo, mais inevitável que uma derrota em Copa do Mundo tendo um Dunga no comando e um Grafitte entre a lista de convocados.
São centenas de comunidades para downloads de shows no Orkut. Além da qualidade de gravação, a velocidade na postagem dos links para download passou a ser fator de concorrência entre os Fulanos CDs, criando entre o público uma nova forma de consumir música. Agora o pessoal não se contenta mais em escutar o último promocional de sua banda preferida, agora a galera quer escutar o show mais recente. E consegue.
Se a banda Garota Safada tocar hoje de madrugada em Patos da Paraíba, o fã que mora Caraguatatuba, no litoral de São Paulo, pode escutar a gravação - com boa qualidade - antes que o dia amanheça.
Por essa, certamente os sizudos pensadores de Frankfurt não esperavam. Se eles queriam a unicidade de cada apresentação ou apreciação de uma obra de arte, aí está! Com a vantagem de que estas apresentações únicas estão aí para todos, de graça. É a classe operária indo ao paraíso.
É certo que essa cultura libertária ainda não foi disseminada homogeniamente por todo o país. O Sul/Sudeste - olhe que curioso dizer isso! - ainda está muito atrasado com relação ao Norte/Nordeste. Pra se ter uma idéia, o pessoal do Norte, mais especificamente a cena tecnomelody de Belém, a muito abandonou o conceito ultrapassado de disco e trabalha majoritariamente em cima de singles, coisa que as bandas mais descoladas do primeiro mundo estão apenas engatinhando na prática. Enquanto isso, os artistas de sertanejo ou pagode do Sul/Sudeste ainda estão na fase de distribuir CDs de graça nos shows.
Mas é uma questão de tempo. A crônica da morte anunciada da indústria fonográfica é implacável. Os pagodeiros e sertanejeiros - e toda a produção musical do Rio Grande do Sul, infelizmente - ainda estão muito amarrados ao esquema das gravadoras. Falta um Chimbinha ou um Antonio Isaias no setor. O Sorocaba, que faz dupla com Fernando, era um vislumbre de esperaça quando arquitetou na base da independência o fenômeno Luan Santana. Mas foram ambos cooptados pela Som Livre, a gravadora que atualmenta representa o maior perigo para a moderna música sertaneja, mas isso, mais uma vez, é outra história.
O legal de tudo isso é que essa inversão completa do paradigma da cultura de massas não foi empreendida por meia dúzia de intelectuais ou artistas metidos a vanguarda, mas sim por uma massa anônima e caótica, que se auto-organiza espontaneamente, supera as contingências e se diverte pra cacete.
Claro que os repeitáveis acadêmicos estudiosos de Frankfurt torçem o nariz quando alguém passa na frente de sua casa escutando alto no som do carro coisas como "Você diz que não me ama / você diz que não me quer / mas fica pagando pau..." e com certeza se recusarão a admitir que terão que aprender tudo de novo. Claro também que os respeitáveis músicos da MPB também torçem o nariz quando ouvem coisas como "Na sua boca eu viro fruta / chupa que é de uva..." e com certeza se recusarão a admitir que a "linha evolutiva da musica popular brasileira" é apenas uma linha, arbitrária e equivocadamente criada, que não representa em nada a realidade musical desse país.
Azar o deles. Na hora em que eles vierem com a cebola e o tomate, já estaremos com o molho pronto, o churrasco no fogo, a cerveja gelada, o som no talo e fazendo a maior festa sobre os escombros de Frankfurt.
6 comentários:
Genial!!!!
Ótimo texto, Timpim !
Mas a questão do direito autoral é mais séria, pois se não encontrar uma maneira de remunerar o autor de acordo nesse esquema "inovador", ele é suicida e pode até ruir os próprios adeptos dele também...
Acabando-se o incentivo financeiro e motivacional do autor que compõe os sucessos que são "emprestados" e "usados" por todos destes surfistas inadimpletes acontecerá que:
- haverá uma menor safra de boas músicas para serem surrupiadas e emprestadas ao sucessos destes tantos
- ou os próprios cantores/grupos terão que gravar suas próprias músicas como regra. E em regra também, é uma minoria de boas músicas que sai de uma situação desta. Fica repetitivo e boas canções não saem impostas num esquema assim, geralmente.
A qualidade cairá mais certamente.
Pois o mesmo aviões do forró e outros, cetamente gravam BOAS CANÇÕES, só que com qualidade duvidosa para alguns.
Quero ver como irão fazer com a qualidade duvidosa E SEM as boas canções.
- haverá menor quantidade de boas músicas disponíveis para serem "usadas" por estes grupos, e consequentemente o crescente desinteresse pelos mesmos grupos que se ergueram utilizando o esquema inadimplente.
Menos shows, menos dinheiro e menos sucesso para se auto-replicar.
Suicídio a médio-prazo.
É o famoso jeitinho de burlar do brasileiro.
Ganha no curto prazo e joga a bomba pro próximo.
abraço
Genial, não! Visionário! Anarquicamente visionário!
Loco loco loco de bão!
A internet é tão restrita, que eu tive que postar meu comentário em outro lugar, porque aqui só aceita comentários de no máximo 4,096 caracteres.
http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/2637688
Mas leia, porque você vai gostar.
Hehehe
Genial, não! Visionário! Anarquicamente visionário! Aliás, anarco-capitalisticamente visionário! Huahuahua
O que é uma boa canção? É uma canção "gostosa" de ouvir? Que o povo todo ouve? Isso é critério?
Acho que a qualidade das manifestações musicais populares é tudo menos duvidosa. Ela é clara e rasa como uma poça d'água. Isso ninguém pode desmentir, ela foi criada para ser assim, assim como o resto das manifestações culturais populares e impopulares também.
Agora, a nova moda dos intelectuais é falar bem da cultura popular. Os emo ouvem sertanejo. É um paradoxo. São os próprios universitários que excluem qualquer um que não seja tolerante com a manifestação popular.
É tudo bullshit, eu fico só esperando o timpin revelar que tudo isso não passa de mais uma peça que ele está pregando, senão em todos nós, então nele mesmo...
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