Este texto lindo é do Hermano Viana
Eu estava em Manaus, lá por volta de 1997, quando ouvi Chimbinha pela primeira vez. As rádios locais só tocavam brega paraense. Logo a sonoridade característica da guitarra, em todas as músicas, chamou a minha atenção. Era um dedilhado barroco, cheio de floreios, mas muito claro e seguro. Anotei o nome de alguns dos artistas, para procurar os CDs. Naquele tempo, ainda havia muitas lojas de discos, que vendiam os produtos oficiais, com encarte e ficha técnica. Percebi, em todos eles, o crédito para o mesmo guitarrista: Chimbinha. Como estava fazendo a pesquisa para o projeto Música do Brasil, e minha próxima escala seria Belém, resolvi procurar o cara. Foi fácil: todo mundo nos estúdios paraenses sabia onde encontrá-lo.
Chimbinha me deu de presente seu CD solo, chamado Guitarras que Cantam, hoje uma raridade que deveria ser relançada para os fãs conhecerem suas origens. Era um disco de guitarrada, claramente herdeiro das invenções dos mestres Vieira e Aldo Sena, que foram muito populares em toda a Amazônia no início dos anos 80, antes da febre da lambada. Sou fã de guitarrada - então foi fácil ficar fã do Chimbinha. As músicas Dançando Calypso e Na Levada do Brega, que abrem o Guitarras que Cantam, estão entre as minhas favoritas de todos os tempos. Elas aparecem tocadas ao vivo num dos episódios do Música do Brasil que passou na MTV e na TVE.
Fiquei fascinado com a movimentação musical em Belém, ainda totalmente desconhecida no sul do país. Escrevi o seguinte texto para o livro de fotografias do Música do Brasil:
"O brega, se ninguém ainda percebeu, é rock. Digo mais: é o mais amado e duradouro estilo do rock brasileiro. Tudo começou com a jovem guarda, e sua adaptação do rock internacional para o gosto popular nacional. Quando Roberto Carlos colocou em segundo plano as guitarras elétricas e se transformou em cantor romântico acompanhado por orquestras, a fórmula inventada pela jovem guarda se descentralizou, primeiro passando pelo Goiás de Amado Batista, depois pelo Pernambuco de Reginaldo Rossi, até chegar ao Pará do ex-governador Carlos Santos, também cantor brega, autor de dezenas de discos.
Hoje Belém é a capital do novo brega. Centenas de CDs são lançados anualmente, a princípio para um consumo regional, mas que começa a atingir também o público nordestino. Os músicos locais já nem chamam o que fazem de brega, dizem que é "calipso", música mais "sofisticada".
O marco do nascimento do calipso - não tem nada a ver com a música de Trinidad e Tobago - foi o sucesso Ator Principal, lançado por Roberto Villar em 1996. De lá pra cá, os discos do novo brega de Belém são produzidos com maior cuidado, as guitarras são dobradas, e o ritmo se acelerou. Algumas pessoas se destacam no meio da profusão amazônica de novas estrelas.
Chimbinha, com 23 anos, tocou guitarra em mais de 200 CDs, só em 1997. É uma das maiores revelações entre novos músicos brasileiros de qualquer estilo, sendo herdeiro direto das invenções de Renato dos Blue Caps - que criou o chacumdum da guitarra brega ao ser obrigado a tocar num disco de bolero, sem saber tocar bolero - e das guitarradas de Vieira.
Mas a revelação mais pitoresca de toda esta cena paraense é Wanderley Andrade, auto-intitulado "o ídolo louro do brega". Quando pedi que resumisse sua história musical, ele me deu a seguinte aula sobre as fronteiras do pop brasileiro:
'Posso falar alguma coisa? Legal, porque a nossa música paraense de hoje é uma mesclagem do ritmo calipso com o twist, na onda de Jerry Lee Lewis. A gente deu muita sorte, porque hoje essa mesclagem, graças a Deus, roda em dezessete estados brasileiros. Essas ondas todas aqui não têm nada de ridículo. É um papo dez, é uma mistura de Nina Hagen, com aquela onda dos Sex Pistols, do Pink Floyd, do Dire Straits, e aí eu peguei o Pepeu Gomes daqui do Brasil e fizemos essa onda: o negócio é sério. Sempre gostei de Elvis a Morengueira.'"
Mais de um ano - talvez dois anos - depois de nosso encontro paraense, Chimbinha e Wanderley Andrade foram convidados para tocar na festa de lançamento do Música do Brasil, que aconteceu no então chamado Tom Brasil, em São Paulo. Isso num palco que também apresentou Siba e vários mestres de Nazaré da Mata, pré-Fuloresta do Samba. Era um tratamento de choque para a platéia paulistana, já um debate sonoro sobre o que é tradição musical no Brasil. Chimbinha, ao ser convidado, disse que queria se apresentar com sua nova banda, a Banda Calypso. Ouvi a fita demo e não achei nada demais. Já teríamos Wanderley com o brega cantado. Do Chimbinha, eu gostaria de ouvir uma guitarrada, mas ele insistiu tanto que desembarcou em São Paulo acompanhado por Joelma, que eu não conhecera em Belém.
Dei uma entrevista para a Trip, dizendo que Chimbinha era um dos melhores guitarristas brasileiros (tentando incentivar sua carreira de guitarreiro) e recebi seus agradecimentos pelo elogio através de alguém que tinha contato com ele no Pará. Outras notícias que chegavam de Belém eram de que Chimbinha tinha deixado de atuar como músico de estúdio e passado a se dedicar inteiramente para a Banda Calypso. Fiquei com pena: achava que bandas como a Calypso havia muitas, que o que faltava mesmo no brega era um instrumentista criativo como Chimbinha, capaz de dar uma sacudida boa nas fronteiras mais conformistas do gênero.
Então perdemos o contato. Só muito tempo depois comecei a ouvir falar do sucesso da Banda Calypso no Nordeste, sucesso cada vez impressionante e cada vez mais nacional. Quando a popularidade ficou indiscutível, no final de 2005 e sem nenhum apoio de gravadora, é que a Calypso começou a aparecer na TV em rede nacional, onde vi Chimbinha novamente já com seu topete louro. Fiquei alegre por descobrir que ele finalmente conseguiu o que queria.
Em 2006, eu já estava trabalhando no Central da Periferia. Queríamos fazer um programa em Belém, contando um pouco a história da música periférica local, do brega ao cibertecnobrega. A presença da Banda Calypso no programa era fundamental, mas estávamos com dificuldade de organizar a gravação por causa de sua agenda lotada de shows, e de viagens de show para show, de segunda a segunda. Resolvi ligar para o Chimbinha, para explicar o programa (que ainda não estreara). Era a primeira vez que conversávamos desde 1999. Achei que ele poderia nem se lembrar de mim. Mas a conversa foi fácil, como se nunca tivéssemos parado de nos ver.
O telefonema, de madrugada (a hora mais fácil para encontrá-lo), durou horas. Chimbinha me contou tudo que havia acontecido desde a festa de lançamento do Música do Brasil. Falou de como perdeu todo o dinheiro que acumulou como músico de estúdio para manter a Banda Calypso nos seus primeiros anos, quando não tocava em nenhuma rádio nem era contratada para nenhum show. Ele mesmo percorria todas as rádios de poste (que têm alto-falantes espalhados nos postes das ruas de Belém) pedindo para suas músicas serem programadas. Foi por causa de um desses alto-falantes de rua que um organizador de shows de Marabá, de passagem por Belém, ouviu a Calypso e convidou a banda para uma série de apresentações no sul do Pará. De lá é que seguiu para Pernambuco, onde passou meses fazendo show diários por uma ninharia. O sucesso aconteceu aos pouquinhos, entre vários momentos de desespero.
Falei do Central da Periferia, disse que o importante para a gente não era mais uma apresentação da Calypso, pois - naquele momento -isso já tinha sido visto em muitos programas de TV. Desejávamos contar a história da banda, de que periferia ela tinha vindo, como batalhou pelo sucesso. Seria ótimo se a Regina Casé pudesse ir com ele para Oeiras, sua cidade natal, para conhecer onde passou a infância. Chimbinha argumentou que a viagem de barco até Oeiras demoraria muitas horas, que não daria tempo. Eu respondi que a produção poderia tentar alugar um jatinho. Do outro lado da linha: "avião eu tenho, o problema é que lá não tem pista de pouso." A ficha caiu: logo descobri com quem eu estava falando - não era mais aquele garoto de 23 anos só com uma guitarra na mão.
Meses depois, recebi o convite - através de um email da minha amiga Meg, comunicadora paraense que hoje trabalha com a Calypso - para ir na casa de Chimbinha e Joelma em São Paulo. Seria um jantar para poucas pessoas, uma comemoração do lançamento do CD e DVD Banda Calypso pelo Brasil. Depois de ultrapassar a poderosa barreira de seguranças do condomínio Alphaville, cheguei numa mansão luxuosa, com colunas na porta. Dentro, só a família, os compositores e músicos que trabalham com a banda, o pessoal que cuida da agência pernambucana que vende os shows, e alguns amigos, como Zezé di Camargo. Joelma e Chimbinha trouxeram um chef de Santarém - o melhor da culinária paraense, segundo o casal - para preparar o jantar com peixes frescos que chegaram na sua bagagem.
Mesa posta, Chimbinha veio me apresentar cada prato. Ele falava sobre detalhes da vida de cada peixe ("este aqui gosta de nadar perto das pedras"), que não eram os peixes óbvios de todo restaurante amazônico. Perguntei curioso, achando que era um hobby biológico: "mas como você sabe isso tudo?" A resposta veio natural, não era nada para causar espanto: "ora, eu vendia peixe na feira com meu pai." Nova ficha caiu, dessa vez com peso de toneladas. Meus olhos lacrimejaram, pensei comigo contendo o choro: "outro dia ele vendia peixe na feira, agora está aqui numa mansão num condomínio em São Paulo, de um extremo a outro da injusta estrutura social do país, quase sem escalas, totalmente na marra... que símbolo incrível das mudanças pelas quais o Brasil está passando!"
Pensei no Lula, que dorme hoje no Palácio da Alvorada, para incômodo de muita gente (incômodo parecido com aquele que gera o sucesso da Calypso...) Mas há diferenças: a ascensão política de Lula é produto ainda das alianças entre vários grupos sociais diferentes, com o apoio decisivo de elites intelectuais da USP, por exemplo. Chimbinha se fez sozinho do lado de lá do cultural divide, sem gravadoras, sem televisão, sem elogios da crítica - eu mesmo, já fã, não tinha dado importância para a sua banda. Outros artistas das chamadas classes populares, para atingir o estrelato precisaram do apoio de mediadores de elite (mesmo Cartola "precisou" de Sérgio Porto...) - agora meu anfitrião estava inaugurando um outro caminho para o sucesso de massas, direto, sem o aval de ninguém do "centro". Essa é uma novidade e tanto para a cultura brasileira. Que bom que as tais "elites" estão perdendo o controle.
Chimbinha, também emocionado, me contou mais de sua história - a época que morou com sua mãe numa invasão em Belém, os maus tratos quando - aos 13 anos - tocava guitarra toda noite num cabaré e pedia para sua mãe para não voltar mais lá, mas sabia que não podia largar o "emprego" pois a família dependia daquele trocado para comer. Eu disse que ele deveria fazer um filme com essa sua história de vida. "Não - Chimbinha respondeu -, não precisa, ele - apontando para Zezé di Camargo - já contou essa história no filme dele, é a mesma coisa. Quero que o meu filme comece quando já está tudo bem, tudo alegre."
Os melhores amigos de Chimbinha em São Paulo são Zezé, Leonardo e Bruno (de Bruno e Marrone). Isto é: metade do PIB musical brasileiro hoje. Interessante que tenham se encontrado e que tenham amizade tão forte. São biografias semelhantes, e também ascensões sociais meteóricas. Leonardo trabalhou com plantação de tomate quando criança. Hoje são essas pessoas que alegram a vida da maioria dos brasileiros. Mas o sucesso não serve de blindagem contra o sofrimento e a dificuldade de ter que lidar com uma situação que sempre - repito: apesar do sucesso - insinua cruelmente que ocupam um lugar que não lhes é devido, que deveria ser ocupado por músicos com formação de "qualidade".
Chimbinha passou o jantar me agradecendo por estar ali, por ter aceito o convite, por ter apoiado sua carreira, por ter colocado sua banda na televisão. Eu dizia que a televisão é que tinha que agradecer, que eu não tinha feito nada, que se ele tivesse seguido meus conselhos nem haveria a Banda Calypso... Mas entendi o que estava em jogo, além do nosso respeito mútuo. Como diagnosticou certa vez, com muita precisão, a Regina Casé falando sobre os motivos para fazermos o Central da Periferia, num momento em que não estávamos nem um pouco confiantes nas virtudes/necessidade do programa - ela dizia algo mais ou menos assim: "o fato de essas músicas viverem esse sucesso popular todo e não aparecerem na mídia, cria uma sensação de irrealidade para tudo, é como se o sucesso fosse um sonho facilmente convertido em pesadelo, como se todo mundo naquele show tivesse tomado uma droga pesada; eles sabem que não precisam da mídia para fazer sucesso, mas o sucesso sem estar na TV - espelho importantíssimo para a cultura popular contemporânea do Brasil - parece oco, virtual; é incrível que a mídia, sendo aparentemente tão virtual, ainda tenha esse poder de conferir realidade às coisas..."
O pessoal que cuida da empresa que vende os shows da Calypso me confirmou: "às vezes chegamos numa cidade lá no interior do Tocantins - o show está lotado com o nosso público, mas o cara que aparece na TV e que não juntaria 100 pessoas tem o melhor cachê, o melhor camarim, é recebido pelo prefeito..." Questões simbólicas e não tanto... O que o novo sucesso popular brasileiro, criado à revelia da mídia, ainda busca na mídia é a legitimação, o selo de que é mesmo sucesso e se possível "cultura". Uma situação que conheço bem por acompanhar a história do funk: sempre tratado como caso de polícia (reuniões sempre na secretaria de segurança, nunca na de cultura), mesmo sendo o ritmo mais popular na cidade... É evidente, mais que evidente: o sucesso por si só não traz respeito.
No final do jantar sentamos ao redor de um piano de cauda branco (igual ao do Elton John, igual ao do Leandro Lehart), para ouvir as músicas do próximo disco, o décimo da banda, que só foi lançado em 2007 mas já estava em gravação. Eu perguntei: "mas como vocês já estão gravando se mal acabaram de lançar o CD/DVD ao vivo?" Chimbinha me explicou seu modelo de negócios, do qual é criador (muito criativo) e mestre: "mas este disco já está todo vendido para um supermercado, 500 mil cópias - não precisa mais ser trabalhado."
Os compositores estão presentes. Não compõem apenas para a Calypso, mas também para Calcinha Preta e várias outras bandas que fazem o Brasil popular de hoje cantar e dançar. São nomes como Beto Caju, Edilson Moreno, Elias Muniz, Edu Luppa, e o arranjador - desde o tempo do Guitarras que Cantam - Helinho Silva. É uma turma que fica internada num estúdio, morando num hotel em São Paulo, enquanto o disco está sendo produzido. É já um outro tipo de relação com os compositores, contratados pelas bandas para escrever seus próximos sucessos. Todos são trabalhadores do pop: parece que têm o método para o sucesso de massa, para a canção que vai agradar a maioria. Imagino que a Motown também funcionasse assim. Eu ia escutando as novas músicas e já podia ouvir as multidões cantando aos berros nos futuros shows lotados.
Já repeti várias vezes aqui que não tinha muito interesse pela música da Banda Calypso, gostava do Chimbinha guitarreiro... Então valorizava mesmo o aspecto antropológico do sucesso, um sucesso bem diferente daquele que a indústria fonográfica tradicional produzia no Brasil. Mas este CD, o Volume 10, eu gosto, pra valer. Musicalmente. É um hit perfeito atrás do outro. Há poucas canções melhores de se ouvir no rádio do que Mais Uma Chance, cantada por Joelma e Leonardo. Quando ouço na rua, meu dia se alegra e saio cantando junto. A situação de amor descrita na letra também é cativante, no seu narcisismo calculadamente desamparado e espertamente ingênuo: "meu amor se eu fosse você, eu voltava para mim, eu viria me socorrer". Um dia, quando um cantor chique fizer uma versão, todo mundo vai achar bacana... Mas é preciso tempo: o popular muito popular só se torna elogiável quando sua popularidade é coisa do passado, não é mesmo?
A fórmula pop da Calypso amadureceu. É um estilo, objeto claramente identificável. A voz de Joelma tem calor e graça - entendo bem porque todas as crianças são apaixonadas por ela. E a guitarra do Chimbinha continua a tal. Ele me disse que ainda pretende gravar outro disco de guitarrada. Nem precisa: não há necessidade do Chimbinha me provar mais nada. Mas que seria bom ouvi-lo novamente em gravação solo, por puro divertimento, ou por egocentrismo meu, isso seria: fecharia um ciclo completo em minha vida. Mas de qualquer maneira: Salve Chimbinha! Salve Joelma! Os músicos mais populares no Brasil hoje! Quando vão ganhar a medalha do mérito cultural?
1 comentários:
They are great!!!
Salve!
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