Encostado na parede, já meio baqueado por várias latas de cerveja e algumas caipirinhas, observo tudo de longe, buscando um certo distanciamento enquanto, no estúdio, roadies e técnicos acertam a luz e o som para a gravação do Estúdio Coca-Zero MTV – Calypso e Paralamas do Sucesso. A credencial de imprensa me dá acesso livre. Não que, nesse momento, isso signifique muita coisa, pois fico zanzando de um lado para o outro, meio sem ter o que fazer enquanto espero o show começar. Entrevista só se for na coletiva.
Se tivesse dado tudo certo, você teria lido essa matéria em outubro de 2008. Era para ser um perfil de uma página de Joelma e Chimbinha para a Rolling Stone. O que explica a minha credencial de imprensa pendurada no pescoço e o direito de fazer duas perguntas na coletiva. Mas estranhos são os caminhos do showbusiness brasileiro e a banda, sabe-se lá porque, não conseguiu fazer a foto encomendada pela revista, o que foi adiando a matéria indefinidamente.
Situação bem diferente de quando encontrei Chimbinha pela primeira vez em 1999 nos estúdios do Xodó, uma casa noturna na saída de Belém do Pará. Tinha me demitido do jornal onde trabalhava e andava num miserê desgraçado. Fui salvo pelo Pedro Só, que me pediu uma matéria de oito páginas sobre a cena brega pop paraense para a Showbizz, quando oito páginas em uma revista de circulação nacional era grana pra cacete. Naquela época, apesar de ainda andar de ônibus, Chimbinha era o session man mais requisitado da então emergente cena brega local. À noite ralava nas casas noturnas da periferia de Belém. De dia, gravava até três discos de uma vez só. No currículo, a fama de ser o melhor guitarrista da cidade e de, com menos de 30 anos, ter mais de mil álbuns com a sua assinatura.
Não é exagero. Eu vi. O homem era uma máquina de gravar. No tempo em que passei com ele, matou dois discos em uma manhã. Funcionava assim: Chimbinha se plantava o dia inteiro no estúdio com seus músicos, já conhecidos como Banda Calypso. O sujeito chegava com as letras e as cifras das músicas debaixo do braço. Chimbinha dava uma olhada, passava as notas para os camaradas e começava a gravar.
Primeiro fazia uma levada simples, que geralmente valia logo no primeiro take. Depois incorporava mais três levadas de guitarra: uma meio aparentada do ska, uma com a mão direita abafando as cordas e um dedilhado limpo que lembrava a surf music, segundo o próprio guitarrista resultado das influências de Mark Knopfler e Mestre Vieira, inventor do estilo amazônico-caribenho conhecido como guitarrada.
Bingo. Estava pronto mais um sucesso do brega pop paraense.
Assim Chimbinha e Joelma foram levando a vida. Gravando discos de dia e se apresentando nas casas noturnas à noite. Ainda nos encontramos uma última vez no ultra-calorento camarim da Pororoka, um galpão reformado na periferia de Belém que, na época, junto com o Xodó, era uma espécie de Factory do brega-pop.
Se você tinha uma banda, queria fazer parte de uma cena e se dar bem como astro brega, lá era o lugar para estar. Se caísse no gosto da rapaziada, tava feito. Como é comum em Belém do Pará, naquela noite a casa tinha escalado cinco bandas. Uma atrás da outra, com a Calypso ensanduichada no meio. No camarim de oito metros quadrados, músicos e dançarinas trocando de roupa meio atrapalhados, esbarrando uns nos outros, as paredes de azulejo encardido molhadas de tanto suor e umidade.
Mal consegui trocar duas palavras com a banda e sai fora antes da Calypso tocar a terceira música. Quase dez anos depois, reencontro Chimbinha em outro camarim. Dessa vez mais luxuoso, com ar-condicionado, espelho de corpo inteiro, banheiro privativo, mesa de frios e outras mordomias.
São quase dez anos. Nesse tempo o Xodó foi demolido e em seu lugar construíram um Habib’s. E a cena brega-pop foi passada para trás no processo de seleção natural da música pelo desbunde digital gangsta do tecnobrega. Bem fez Chimbinha, que, junto com Joelma, se mandou para o nordeste logo que o negócio em Belém começou a fazer água para dar início aos seus planos de dominação mundial.
“Pô, tu não é aquele cara da revista Showbizz que me entrevistou lá em Belém?”, pergunta Chimbinha no início da “coletiva”, que na verdade acabou se resumindo a mim e a mais dois repórteres.
“O próprio”
“Me lembro de ti. Mas porra, tu não tinha essas tatuagens todas não”, continua ele rindo.
Aproveito a disposição do rapaz em quebrar o gelo e pergunto logo se a parceria com duas mega-corporações – e logo depois de um acústico para a Som Livre – não complica a vida da Calypso como a maior banda independente do Brasil.
Chimbinha nem se abala. Dá um sorriso de Gato de Alice e desenrola aquela fala mansa de caboclo ribeirinho.
“Olha, cara, Coca Zero, disco pra Som Livre…É legal de fazer? É. Principalmente esse aqui com os Paralamas, uma banda da qual sou fã. Mas são parcerias nossas com essas empresas. Os donos das músicas, da banda Calypso, ainda somos eu e Joelma. Depois que a gente fizer isso aqui, vamos voltar para o nosso esquema de gravação e distribuição, que é totalmente independente”.
“Então nada de gravadora?”
“GRAVADORA? Pra que? Olha só: porque eu iria pagar para uma empresa distribuir e vender as minhas músicas se, hoje em dia, eu mesmo posso fazer isso? Gravadora não serve pra nada. Só para tirar dinheiro da
gente. Não me faz falta de jeito nenhum”.
“E a pirataria?”
“Aí já é diferente. A pirataria é péssima”, responde Chimbinha meio irritado.
“Mas ajuda as bandas da cena tecnobrega de Belém…”
“Ajuda e não ajuda, né?”
“Porque?”
“Porque o compositor acaba sendo prejudicado, porque a banda não ganha com as vendas de CDs e DVDs, porque a pirataria não paga direito autoral…”
“Por outro lado as bandas ganham com shows”
“Nem todas, né? E mesmo as que ganham…como fica o compositor? Eu pago todos os meus compositores. É tudo registrado, legalizado, recolhemos direito autoral…”, continua o guitarrista até ser interrompido por um produtor informando que a gravação já vai começar.
Eu ainda queria perguntar se a Calypso NUNCA havia se beneficiado com a pirataria e se teria chegando tão longe não fosse a milenar arte chinesa da reprodução não-autorizada. Lembro de um amigo ligado à área da música, carioca, que se informa sobre o que está rolando na música popular brasileira através do fornecedor de DVDs e CDs piratas do porteiro do seu prédio. E do meu pai que, morando em Porto Alegre, descobriu em um camelô que existia uma banda paraense de sucesso nacional.
OK, ele mesmo grava e prensa seus discos, licenciando a sua venda para distribuidores locais e regionais. Ou mesmo vendendo-os em seus shows a preços populares. Mas é difícil acreditar que a súbita popularidade da Calypso e a disseminação da sua música pelo Brasil aconteceriam sem o auxílio da economia informal. Chimbinha pode até detestar a pirataria, mas ela lhe adora.
E na proporção inversa à raiva que o guitarrista sente ao ver as verdinhas batendo asas cada vez que alguém compra um disco pirata seu, mais e mais CDs e DVDs da Banda Calypso entopem as bancas dos camelôs. Seja em São Paulo, Luzilândia ou Belém do Pará.
A gravação termina. No palco a química entre a Calypso e os Paralamas funcionou que foi uma beleza. O que a música da banda tinha de simplório foi melhorado por Herbert, Bi e Barone, que se apropriaram das canções da dupla para recriá-las a partir de elementos de reggae, ska e hard rock, deixando Chimbinha solto para tocar guitarra e, em troca, meter o bedelho nas composições do trio.
Ele se aproveita e usa a sua matriz criativa brega-pop para fechar as conexões afro-caribenhas abertas pelos Paralamas ainda nos anos 80, como se Al Anderson se juntasse a Mestre Vieira para queimar um fumo com Fela Kuti em uma jam session na casa de Pinduca.
1 comentários:
Timpin! Tive a satisfação de conhecê-lo, e da forma mais inesperada possível. Feriadão, vim pra minha cidade no interior da Bahia, Ituaçu. E adivinha onde a a Banda esteve hospedada? Na pequena cidade. Daí, fui ver se conseguia vê-lo. Além de fazer a cobertura do evento, feito em parceria com um conhecido meu, conheci a praticamente todos da banda. Muito bom!
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